“Trata-se dum Almanach da Beira — um
livro que, segundo julgo, vai naturalmente falar do Fundão e seus arrabaldes,
da sua história, das suas lendas, das suas paisagens sugestivas, cujo verde tom
nos embriaga os olhos e sentimentaliza a alma. Trata-se de debuxar nas páginas
dum livro o panorama, meio agreste, meio bucólico, deste opulento vale da
Beira-Baixa, com os seus soitos de castanheiros a desenrolarem em tapete
d’Arraiolos por essa Gardunha abaixo. Trata-se também, mais praticamente, de
anotar o movimento comercial, agrícola e industrial, deste pequenino centro de
população portuguesa, que trabalha honradamente e que, embora com censurável
lentidão, progride ainda assim. E a mim, que sou um filho adotivo desta terra, falarem-me
do Fundão é falarem-me d'um pedaço da minha alma, pois tenho por ele um afeto
carinhoso, um verdadeiro afeto de filho verdadeiro. Quando d’antes, nos bancos da escola, à simples inspeção
do nosso mapa topográfico, os meus olhos se poisavam indiferentes sobre os
sinais gráficos deste país da Beira-Baixa. Eu via-o apertado entre altíssimas
serras, e fazia d’ele, ao fundo das montanhas, a ideia d'uma espécie de Boca
do Inferno, onde haveria uma porta larga, caverna ou gruta misteriosa e sem
fim, que iria dar ao país de Pero Botelho… O vale do Fundão tinha, para a minha
pobre imaginação de menino d’escola, um aspecto tragicamente agreste, com
serros e árvores colossais, cujos braços gigantes seriam bem dignos de ser
gravados às mãos artísticas de Gustave Doré na grande obra de Dante… Depois,
não sei como, chegaram aos meus ouvidos ecos de lendas mortas, onde faiscavam
ardentes lâminas de punhais assassinos, e onde os homens e os corações, pela
crueza dos seus sentimentos, compartilhavam do aspeto selvagem das serranias
que lhe talhavam o horizonte. Era a Cova da Beira — cova sombria,
sáfara, crespa d’espinheiros bravos, sem uma esmola de sol nem de luar que lhe
desse riqueza às coutadas e poesia às arribanas dos pastores… Mais tarde, com a
história do tempo dos
franceses e as guerrilhadas da patuleia, a minha pobre cabeça encheu-se de
tragédias militares, com arcabuzes a desfecharem-se à queima-roupa nas
encruzilhadas, e cadáveres estendidos nas quelhas húmidas… E de tudo isso lá devia
haver, n’esse Fundão de traz-serra (como eu dizia da minha aldeia, à beira-mar)
n’esse vale agreste, por onde Viriato andou à pedrada aos romanos... (…).
Mas
lá veio um dia em que, aos baldões da fortuna, fui poisar n’essa linda terra,
como uma ave d’arribação que vai em cata do seu país de sol. O coito das lendas
sombrias e das tragédias políticas, esse Fundão negro que me entrara na alma de
braço dado (…), transmudou-se rápido, aos meus olhos de simples forasteiro,
n’um doce cantinho de terra, farto e abençoado, onde cada pomar é um jardim e
onde os jardins cobrem toda a terra.
Vistas
de perto, ao sol dos dias d’hoje, as verdes paisagens d’estes lugares tem
sobre mim o poder irresistível d’um encanto que me enfeitiça. Oiço às tardes
dos domingos, por essas fazendas e quebradas dos montes, o tanger magoado do
adufe, evocando coros moiriscos; oiço a flauta dos pastores a chorarem
bucólicas serranilhas. E d’esses cantares, cuja monotonia se casa tão
intimamente com o aspecto grandioso das montanhas que orlam o vale do Fundão,
andam folhas despegadas pelo ar a enfeitiçarem o ganhão que vai guiando os
bois, o lavrador que anda às voltas com a sua jeira, o lagareiro no seu lagar
húmido... A música das romarias espalha-se como uma poeira cálida sobre todos
os corações; e, quando os ranchos passam, engrinaldados poeticamente, com os
seus fatos domingueiros, a estrada é
uma longa fita d’arraial em festa, sobre cujas árvores a passarada
chilreia e dança também de ramo em ramo. (…)
Porque
somos nós, os portugueses, quem menos conhece a beleza regional do seu país;
porque somos nós, os portugueses, quem talvez mais vote ao desprezo as coisas
da sua casa. Diz a lenda que, ao tempo dos nossos primeiros reis
conquistadores, quando a moirama ia em debandada para as suas terras, os
moiros, com os olhos tristes poisados nas ameias dos castelos donde eram
esbulhadas à ponta de lança, iam dizendo:
—
Aí vos deixamos pedras doiro para nos apedrejardes. Ah! Mas não nos lapideis;
guardai-as antes! E a lenda passou como todas as lendas; e esse clamor dos
vencidos não foi ainda compreendido de todo no dobar dos tempos.
Quem
encontrará a primeira pedra?
Adolfo Portela
Setúbal, 1899